sexta-feira, 25 de junho de 2010

o dom de [não] ser cronista

"Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela."

[GUARDAR, de Antônio Cícero]

Tenho inveja dos cronistas sabe? Gente que consegue escrever longas linhas sobre um par de brincos, um salto quebrado, um ônibus cheio.
Não me sinto tão culpada por essa imensa preguiça de escrever por saber que as coisas não me tocam menos, o mundo não me choca menos. Não sou menos sensível. Sou apenas mais preguiçosa, mais minimalista, talvez mais reservada. O que não escrevo, não divido no todo, continua aqui, latente. E continua na lembrança.
Já me disseram que tenho uma memória inigualável. E tenho, sei. Posso lembrar por dias de um olhar, de um sapato, de uma palavra sutil, de uma risadinha maldosa, de uma insinuação.
Posso lembrar para onde olhava enquanto falavam e sobre o que falavam. Na pior das hipóteses, vou lembrar do que eu pensava enquanto ignorava o que falavam. É assim que presto satisfações, é assim que me vingo, é assim que sou a amiga, a namorada, a filha que eu sou. Não esquecendo. Nem dos meus inimigos me esqueço. Esquecer é perdoar e tenho isso de não perdoar. Minha memória vale o que pago por era, pago caro. Ela joga contra mim às vezes, mas LEMBRA.
Ninguém saberá por uma crônica elaboradíssima que tentei espiar meu namorado tomando banho, me pendurando no para-peito até quase cair. E que quando ele fechou a janela eu fiz um beiço imenso, que só vendo.
Ninguém saberá de uma maneira poética como ontem eu chorei feito uma louca assistindo a um DVD da Elis. Ela cantando “porque foste..” olhando nos olhos do César Mariano. Ele sentado no piano, um misto de descrença, lisonja, timidez. Não era qualquer mulher, afinal, cantando que ele “foi o que tinha de ser”.
Ninguém vai saber por uma crônica que engasguei quando meu pai disse que estava sentindo minha falta em casa, “nem que fosse pra incomodar”, mandar ele fazer alguma coisa”. Nem ele saberá porque tudo que eu quis dizer para ele ontem numa carta resumi hoje com um: “Não venho hoje, mas amanhã acho que almoço em casa. Te amo. Te cuida. Qualquer coisa, me liga.”
E talvez ele também tenha resumido sermões intermináveis com um “Vai com Deus, te cuida, pegou sombrinha?”
O cookie de ontem à tarde com chazinho de morango também não vai virar crônica mas como ele foi fundamental! Foi quase um carinho no rosto. Me lembrou tanta coisa, me levou a tantos lugares. Me deu vontade de colinho de irmã, de casa de vó em segunda-feira de tarde. Vontade de uma tarde sem fazer N A D A. Não virou crônica, virou foi um filme de ação, eu tentando desligar todas as bombas antes do final do expediente.
Não vou escrever uma crônica sobre a saudade que tenho das minhas amigas que estão longe, nem das que estão perto e que também estou com saudade. Essa saudade vai se transformar em visita e em dinheiro para pegar avião e voltar para um Rio de Janeiro que me chama. Andar, andar e andar vestida de hippie, com cabelo enrolado no alto da cabeça e brincar que sempre nos vemos nos finais de semana e que o mar é para todos. E para conhecer São Paulo. Colorir aquele céu com meu batom e o cabelo vermelho dela. E ninguém vai escrever crônica sobre nós, sobre como a noite e os bares são diferentes quando estamos nele. Talvez ninguém nos convide para estrelar um videoclipe sequer, mas nós sabemos que o mundo está tomando conta de nos guardar. E minha memória também, talvez até o leito de morte. Vou rir sozinha, ou farei vocês rirem com bobagens que pensamos, que vivemos e que imaginamos. Não seremos ‘cronadas’, mas cachorros puxarão conversa. Seremos alunas, seremos matéria. Nas ruas.

Hoje, arrumando a mochila-pára-quedas, fui acomodando os objetos e vi que meu envelopinho de chiclete tinha uma coisa engraçada: a metade de um. Mas não partida ao meio, como já fiz várias vezes. Partida com uma mordida, por cima do papelzinho mesmo, à moda louca. Estava lá, daquele jeito de duvidar que tinha sido comprado, qualquer um diria que eu tinha achado no chão. Ri sozinha. Achei um excesso, uma intimidade bonita, achar alguma coisa minha – além de mim – daquele jeito: diferente, desalinhada, bagunçada por ele.
Um cronista teria feito uma crônica sobre isso, sobre a paixão num envelope de Trident, ou sobre intimidade, ou sobre como os homens são descuidados ou como mulheres exageram na minúcia.
Eu não funciono assim, infelizmente. “Meu namorado não come um chiclete inteiro”, talvez nenhum cronista tivesse vergonha de intitular uma crônica assim. Me limitei a achar um desaforo engraçado, jogar o envelope pra dentro da mochila, pegar a chave e sair correndo para o trabalho.
E aquela metade de chiclete marcada de dentes será a última que vou comer do envelope. Vou mascar subindo a ladeira que me leva até ele.
Mas é claro que nada disso vai virar crônica. Para isso, só sendo cronista, coisa que não sou.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

tradicionalismo

Não faço palavras cruzadas sem ele, gosto de dividir a angústia da palavra não encontradam do significado desconhecido
Com ele.

Não tomo banho depois da despedida, prezo pelo cheiro das mãos dele em meu rosto
Guardo o cheiro de seu sexo, seu gosto
Em mim.

Não lavo a camisa que ficou na minha casa, eu roubo
Devolvo-a inda suja, já sem cheiro nenhum, peguei-o todo
Pra mim.

Não uso meus pijamas na cama dele
Se alguma roupa for necessária, vez ou outra,
Que seja a dele, preta, branca...
Que seja sua coberta, seu abraço
Que seja ele, e somente dele qualquer coisa
A me cobrir a nudez.